quinta-feira, 22 de abril de 2010

Colorida, viscosa e talvez terapêutica


Da ilha do Faial chegou uma surpresa: o Porto da Horta está pejado de uma lesma-do-mar, onde se isolou uma molécula nova. Os primeiros testes indicam que tem propriedades farmacêuticas. Se daqui surgir uma patente, as populações locais deveriam receber parte dos benefícios? Há uma discussão em curso sobre isto a nível mundial.

Teresa Firmino

Parece feita de veludo e, só de a ver em fotografias, apetece tocar-lhe para confirmar se é macia. E as suas cores, um azul e um verde vistosos, são um aviso aos predadores, como se gritasse aos quatro ventos para não a comerem, que é tóxica. O aviso é a sério: a “Tambja ceutae” é uma lesma-do-mar que acumula uma molécula tóxica, agora descoberta, para defesa própria.
A espécie já é conhecida há mais de 20 anos: com cerca de 2,5 centímetros de comprimento, foi encontrada pela primeira vez em 1988 em Ceuta, daí o nome científico que lhe atribuíram. Tanto em Ceuta, como Marrocos, Sul de Espanha, Canárias, Cabo Verde, Madeira e Açores, os locais onde entretanto tem sido observada, nunca primou pela abundância.
Mas em Agosto de 2007 as coisas mudaram: numa campanha internacional de estudo das lesmas-do-mar do Atlântico, que incluiu o biólogo português Gonçalo Calado e que passou por locais como as Bermudas ou o Brasil, os cientistas mergulharam numa zona mesmo à mão de semear e deram de caras com ela. Estava colada à ilha do Faial, a pouca profundidade.
“Encontrámos muitos exemplares dentro do Porto da Horta. Apanhámos algumas dezenas, entre meio metro e dois metros de profundidade. Foi fantástico”, conta Gonçalo Calado, professor da Universidade Lusófona e investigador do Instituto Português de Malacologia.
Por que é que há ali tantas “Tambja ceutae”? A resposta encontra-se no que lhe serve de alimento. Ela come um briozoário, animal que vive agarrado ao fundo por um pé (parece um raminho) e que se alimenta de partículas que filtra da água. Ora esse briozoário, da espécie “Bugula dentata”, existe em grande quantidade nas paredes do Porto da Horta. “E ela cresce e multiplica-se lá. Facilmente se localizam centenas de exemplares.”
Nessa campanha, também a observaram no mar, entre as ilhas do Faial e do Pico – mas em menor quantidade, porque o briozoário é aí mais escasso.
Os exemplares recolhidos foram congelados e encaminhados para um laboratório em Itália, para uma série de estudos. “Só agora foi possível obtê-la em quantidade suficiente para os estudos químicos”, explica Gonçalo Calado.

Guerra química contra o cancro

Os especialistas de lesmas-do-mar (ou nudibrânquios, como lhes chamam) sabem que este grupo de animais foi desenvolvendo a capacidade de fabrico ou de acumulação de substâncias químicas que afastam, ou até matam, os predadores. Não têm concha, o que à partida é uma desvantagem, mas arranjaram outros meios de protecção – avançaram para a guerra química. E a coloração chamativa do corpo, associada às armas químicas que desenvolveram, funciona como um aviso aos potenciais predadores. Cores vivas costumam ser sinónimo de lesmas tóxicas, mas também as há imitadoras: embora sejam comestíveis pelos predadores, protegem-se atrás da cópia das cores vistosas de outras espécies, essas sim indigestas.
Para os seres humanos, as armas químicas das lesmas-do-mar podem revelar-se valiosas. Vários estudos têm demonstrado que são detentoras de moléculas raras na natureza, que podem ter também interesse farmacêutico. Por exemplo, a empresa PharmaMar, em Madrid, tem estado a testar moléculas oriundas de lesmas-do-mar contra o cancro. A ideia não é apanhá-las até à exaustão para extrair as suas moléculas; antes é inspirar-se nessas moléculas para as fabricar em laboratório.
Os resultados dos estudos químicos da “Tambja ceutae” foram apresentados na revista científica “Bioorganic & Medicinal Chemistry Letters”, num artigo publicado em Fevereiro e que o Instituto Português de Malacologia divulgou este mês em comunicado de imprensa: a equipa isolou uma nova molécula e ela apresenta propriedades antitumorais.
A nova molécula chama-se tambjamina K. Como se depreende pela letra, é a 11ª molécula desse grupo, que recebeu este nome porque as tambjaminas foram isoladas pela primeira vez em lesmas-do-mar do género “Tambja” (de uma espécie diferente da estudada agora). As tambjaminas também estão presentes em bactérias e noutros invertebrados marinhos, como os briozoários.
Aliás, a “Tambja ceutae” deve adquirir a molécula através da comida. “Foi detectada em pequenas quantidades no briozoário. Muito provavelmente, é o briozoário que a produz e a lesma-do-mar, ao comê-lo, guarda a molécula para a sua própria defesa”, diz Gonçalo Calado, um dos autores do artigo científico.
Os testes, ainda muito preliminares, revelaram que a tambjamina K possuem actividade contra células humanas cancerosas do cólon, do útero e do cérebro, por exemplo. Dependendo da concentração, a molécula exibiu uma actividade tóxica notável tanto em células tumorais como em células não tumorais de mamíferos, concluiu a equipa no artigo, acrescentando que a tambjamina K impediu a proliferação de todas as linhas celulares testadas.
Uma patente em vista? “A molécula é promissora, mas ainda não está em fase de ser patenteada. Ainda está longe de uma patente”, responde Gonçalo Calado. Antes de mais, é preciso encontrar grupos científicos que se interessem pela molécula, nomeadamente em empresas farmacêuticas, e que avancem com uma bateria de testes mais específicos. Mas desta história pode tirar-se uma lição: “O mar como fonte de substâncias naturais para uso humano ainda nos traz muitas surpresas, mesmo quando olhamos para espécies relativamente comuns e em áreas muito humanizadas, como é o caso do Porto da Horta”, sublinha o biólogo. “Quem diria que no Porto da Horta existia uma espécie com uma molécula nova, que é promissora em termos de algum tipo de tratamento?”

Como partilhar os benefícios?

Esta lesma-do-mar pode também ser ilustrativa de um debate em curso entre os 193 países que ratificaram a Convenção da Diversidade Biológica das Nações Unidas, em vigor deste 1993. Além da conservação e do uso sustentável da biodiversidade, esta convenção defende a partilha equitativa dos benefícios comerciais resultantes da utilização de recursos genéticos.
Os países têm estado a preparar o rascunho de um protocolo, que vão discutir em Outubro, em Nagóia, no Japão: o objectivo é chegar-se a um acordo vinculativo sobre o acesso e a partilha dos benefícios de recursos genéticos. Como devem ser partilhados os benefícios do desenvolvimento de uma molécula (cujo fabrico é comandado por genes, em última análise)? Só a empresa que investiu deve ter direito a eles? Ou também devem ser partilhados pelas populações locais onde essa molécula foi encontrada? E ainda pela humanidade?
A discussão promete aquecer e, enquanto não soubermos o que resultará da conferência de Nagóia, desvende-se se o aspecto da “Tambja ceutae” é como parece, fofo e quase almofadado. Pois não é. “Tem um muco à volta. É viscosa.”

Texto publicado hoje no suplemento especial do "Público" dedicado ao Dia da Terra
A fotografia foi cedida por Ricardo Cordeiro, biólogo da Universidade dos Açores

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Descobertas as fontes hidrotermais mais profundas no oceano

Uma missão britânica descobriu as fontes hidrotermais mais profundas de que há conhecimento: situam-se a cinco mil metros, no mar das Caraíbas, na Fossa das Caimã. Neste caso, as emanações de água muito quente, vinda do interior da crosta terrestre, são negras.
As fontes hidrotermais em profundidade, no oceano, foram localizadas pela primeira vez em 1976, no Pacífico, e revelaram a existência de formas de vida inesperadas. Em redor destas fontes, cuja água pode ultrapassar os 300 graus Celsius, a vida é abundante, apesar de a luz solar não chegar ali.
A vida ali é independente da luz solar e da fotossíntese. Na base da cadeia alimentar estão, por exemplo, bactérias resistentes ao calor: elas extraem das fontes elementos químicos que constituem os seus nutrientes e vão, por sua vez, servir de alimento a outros seres vivos. Além de bactérias, nas chaminés hidrotermais acumulam-se metais, como cobre, ferro ou ouro.
Nas águas dos Açores também se descobriram campos de fontes hidrotermais – o primeiro foi o Lucky Strike, em 1992. Foi descoberto por uma equipa norte-americana a 1700 metros de profundidade.
Agora, a missão liderada pelo Centro Nacional de Oceanografia de Southampton encontrou as fontes mais profundas até ao momento, na Fossa das Caimã, que fica entre as ilhas com esse nome e a Jamaica. A descoberta foi possível graças à utilização de dois robôs submarinos.
Primeiro, a equipa utilizou o veículo Autosub6000, capaz de viajar de forma autónoma (sem estar ligado por cabo a um navio) até 6000 metros de profundidade, e permitiu cartografar o fundo do mar com grande pormenor. Depois, o HyBIS entrou em cena, operado à distância no navio britânico “James Cook”, através de um cabo, e com as suas câmaras de alta definição obtiveram-se imagens de qualidade das fontes hidrotermais de fluidos negros.
Os cientistas encontraram ainda acumulações de cobre e ferro a forrar as chaminés hidrotermais. “Foi como vaguear na superfície de outro planeta”, disse o geólogo Bramley Murton, um dos líderes da equipa e o piloto do HyBIS no mergulho da descoberta, citado num comunicado do centro de oceanografia britânico. “Nunca tinha visto nada assim: os matizes do arco-íris nos minerais e os azuis fluorescentes nos tapetes microbianos que os cobriam.”

Notícia publicada hoje no "site" do jornal "Público"